Texto de Mirella Faur
Na Idade Média havia uma lenda difundida em Provença, que,
após a crucificação (em torno do ano42), Lázaro, suas irmãs Maria Madalena e
Martha, junto com MariaJacobé, Maria Salomé e Maximiano foram colocados pelos
soldadosromanos num barco sem velas, nem remos, para assim perecerem no mar.Depois
do barco ser levado pelos ventos, apesar da falta deequipamento e comida, a
embarcação conseguiu resistir àstempestades e aportou numa praia no Sul da
França, próxima aodesaguar do rio Ron, num vilarejo conhecido atualmente como
SaintesMaries-de-la-Mer. Também segundo a lenda, cada um dos viajantesseguiu
rumos diferentes. Maria Madalena teria ido para Saint Baume,onde se refugiou em
uma gruta no alto da montanha, de muito difícilacesso e lá passou o resto da
sua vida, envolta apenas pelos seuslongos cabelos e sendo alimentada duas vezes
por dia pelo manatrazido pelos anjos. A gruta foi e continua sendo lugar
deperegrinação, pois a partir do século 5 os monges cristãostentaram melhorar o
árduo caminho; como reis participavam dasperegrinações, para sua facilidade foi
construído o ”cheminde rois”, percorrido a cavalo.
A grande descoberta cristã teria sido em1279, quando os
supostos ossos de Maria Madalena foram encontradosperto de Saint Maximim. Um
documento datado de 710 (que depoisdesapareceu), encontrado pelo conde Charles
de Provence depois de umaviso num sonho, teria confirmado a autenticidade do
achado. Charlesgastou sua fortuna para construir a Basílica de Saint Maximim,
ondeé guardado o suposto crânio de Maria Madalena num relicário. Estaigreja era
um ponto importante no culto dos cátaros (quereverenciavam Madalena como sendo
a esposa de Jesus) e ainda é muitovisitada atualmente.
As Marias - Jacobé e Salomé –permaneceram na área, curando e
ajudando doentes e crianças. Marthafoi para Tarascon, onde domou um monstro que
saia das águas de Ronpara devorar pessoas e animais. Lázaro foi para Marselha
ondecristianizou a população e se tornou o primeiro bispo cristão. Emoutra
versão, Maria Jacobé, Maria Salomé e Maria Madalena teriamsupostamente ensinado
o cristianismo à população local. Isto éapenas um mito, já que oficialmente o
cristianismo passou a existirna Europa muito tempo depois da morte destas
Marias.
No barco dos refugiados cristãos veio tambémuma enigmática
jovem com pele escura – Sara - descrita de váriasmaneiras pelos historiadores:
ora como uma empregada egípcia dasMarias (que estava junto delas quando
encontraram o túmulo vazio deJesus), ora como uma princesa cigana acampada nas
areias de Camargue,que teria ajudado o barco atracar, ora como uma sacerdotisa
egípciarefugiada na Líbia, que teria vindo junto com as Marias e guiado obarco,
orientando-se pelas estrelas. A mais recente versão divulgadapelos escritores
Margaret Starbird (A mulher com o jarro dealabastro), Michael
Baigeant&Richard Leigh (Holy Grail,Holy Blood) e Dan Brown (O Código da
Vinci) aapresenta como filha de Jesus e Maria Madalena, crença partilhadapelos
cátaros e motivo da sua dizimação pelo Vaticano. No dogmacristão, afirma-se que
Maria Madalena teria vivido e morrido emÉfeso e suas relíquias foram levadas
para Constantinopla, apesar defaltar qualquer evidência histórica ou
arqueológica para estasuposição.
Existem vários erros e anacronismos entre achegada do barco
no primeiro século, a lenda das Três Marias datadado século 13 e a citação
cristã da presença de Sara no século16, descrita como coletora de esmolas para
auxiliar as Marias. Estefato fez pressupor que fosse cigana e por isso ela
teria sido adotadacomo padroeira dos ciganos. Outra lenda diz que Sara, a
egípcia,espalhou seu manto sobre a água quando o barco estava em perigo deafundar-se,
permitindo assim todos chegassem a terra com segurança.Uma lenda popular Romani
afirma que Sara era a "rainha"de um grupo cigano na área aonde
chegaram as três Marias, que foibatizada por elas e aprendeu o cristianismo. Na
atual igreja deSaintes Maries dedicada ao Saint Michel, existem estátuas das
duasMarias “brancas” e uma da negra Sara, atualmente aceita comosanta cristã.
Na Idade Média, os monges cristãos procuraram acharrelíquias
milagrosas atribuídas às santas e em SaintesMaries-de-la-Mer foram achados
vários crânios humanos arrumados emforma de cruz e os esqueletos de três
mulheres Junto dos ossos tinhauma pedra polida de mármore chamada de
“travesseiro das santas”,sobre a qual estavam os crânios das mulheres e um
altar de pedra. Adescoberta serviu como prova (mesmo sem ter uma
verificaçãocientífica posterior) de que os corpos pertenciam às trêsMarias. O
rei René d’Anjou e sua rainha Isabelle ordenaram oenterro dos ossos num
oratório construído em 1448. (A cripta em quese encontra atualmente a estátua
da Santa Sara data desta época).Numa cerimônia na presença do casal real, as
relíquias foramcolocadas acima do altar da igreja de Saint Michel. Durante
arevolução francesa, os relicários foram destruídos, mas os ossossalvos pelos
padres e depois colocados em novos relicários, quecomeçaram a ser levados em
procissão a partir de 1862. Com o passardo tempo, Maria Madalena foi esquecida
pela Igreja e desapareceu dotrio de Marias. Atualmente, a versão oficial e
moderna da Igreja éque apenas as duas Marias (Jacobé e Salomé) chegaram em um
barco daPalestina com sua serva Sara, que agora é chamada de Santa Sara,apesar
de que oficialmente não seja santificada ou beatificada pelaigreja, sendo
mantido somente seu culto local.
O encontro dos três esqueletos explica a presençadas Marias,
mas nenhuma prova da existência de Sara foi achada. É asua estátua negra - e
não suas relíquias - o ponto central no seuculto e que é levada anualmente em
procissão pelos ciganos. Apresença da estátua negra na cripta da igreja permanece
misteriosae sem nenhuma explicação oferecida pelas autoridades da igreja.
Aestátua atual é substituta de uma estátua anterior, que por suavez substituiu
uma mais antiga. Acredita-se que ela represente defato uma Madona Negra ou que
ela seria a versão cristianizada dadeusa hindu Kali, cultuada pelos ciganos e
do cujo culto faz parte aprocissão para o mar.
Embora existam muitas Virgens e Santas Negras nospaíses
cristãos do mundo todo, destaca-se como um enigma a imagemnegra adorada pelos
ciganos em Saintes Maries-de-la-Mer em Camargue.A verdadeira origem desta
imagem é perdida nas brumas do tempoantigo, entretanto não há dúvidas da
existência de imagens deDeusas Negras muito antes da existência do
cristianismo. De acordocom alguns pesquisadores e confirmado pelas
escavaçõesarqueológicas, a atual Saintes Maries de-la-Mer foi venerada como
umlocal sacro desde a pré-história, originalmente pelos celtas.Conhecida como
Oppidum Priscum Ra tinha uma fonte sagradaonde eram cultuadas as deusas
tríplices Matres,substituídas depois pelos cultos romanos. Há evidências que
noprimeiro século d.C., ainda havia templos de Ártemis, Cibele e Ísisnas
redondezas e o local era conhecido como Ratis, quesignifica “jangada”.
Posteriormente o termo foi aplicado àprópria igreja cristã, que tem formato de
barco e por muito tempofoi conhecida como Notre Dame de Ratis (“Nossa Senhora
daJangada”). Com o advento do cristianismo e da prática comum detransformar
templos pagãos em igrejas e deuses em santos,provavelmente algum culto local e
seu templo dedicado a deusastríplices como as Matres fora assimilado ao mito
das Três Marias.
Muitas lendas foram criadas e continuamaparecendo novas
versões místicas ou romanceadas, sem existir umaconfirmação oficial apresentada
pela Igreja Católica Romana, paraexplicar as lendas folclóricas dos grupos
ciganos, que frequentam aperegrinação anual ao santuário de Saintes
Maries-de-la-Mer nosdias 24 e 25 de maio. A maioria destes romeiros vindos da
França,Espanha, Hungria, dos países do leste europeu e de outras partes
domundo, chegam alguns dias antes da festa e acampam próximo aosantuário, onde
trocam notícias, arranjam casamentos, oferecemleituras de mão aos turistas,
dançam e tocam músicas parahomenagear Santa Sara Kali. Uma vigília noturna
precede o dia24 de maio, feita na cripta onde a imagem negra de Santa Sara
ficaalojada.
Existe muito nonsense escritosobre os ciganos que foram
difamados, repelidos, perseguidos e mortosao longo dos séculos no mundo todo.
Atualmente, através depesquisas linguísticas e genéticas, conhece-se a sua
origem: elessaíram do Norte da Índia em torno de 900, chegaram à Pérsia em950 e
no Egito em 1230. Entraram na Europa central através deBulgária e Romênia (que
talvez explique sua autodenominação deRomi ou Romani) no final do século 14 e
atémeados do século 15 haviam se espalhado tão longe como Espanha etão a leste
como a Polónia, Ucrânia e Lituânia. Sua primeiraaparição documentada na França
foi em Paris em 1415. Os gitanos,nome usado para definir os ciganos na Europa
(devido à suaproveniência do Egito) são um povo misterioso e que
jamaispartilhou suas crenças religiosas. Supõe-se que eles cultuam Saracomo a
reminiscência de uma antiga deusa pagã, possivelmente Kaliou uma Madona Negra.
São mencionados como estando presentes naperegrinação e procissão de Saintes
Maries de-la-Mer tão cedoquanto meados do século 15.
Qualquer tentativa de definir quem realmente é SaraLa Kali
ou para explicar como ela passou a ser adorada pelosciganos no contexto do
dogma oficial, está condenada ao fracasso, amenos que a questão seja abordada
partindo da visão da culturacigana. No passado, a maioria dos ciganos que
participavam daperegrinação anual foram os Sinti franceses, outros gruposRom da
França e os Calés da Espanha.Durante a era comunista, os ciganos eram impedidos
de viajarem pararealizarem a peregrinação, levando ao crescente número atual
deperegrinos. Além deles, existem milhares de turistas que apenas vãoao local
para admirar a festa colorida, tirar fotos e filmar.Atualmente, o número de antropólogos,
cineastas amadores eprofissionais, curiosos, grupos místicos, turistas e
outrosnão-ciganos geralmente supera a presença numérica dos ciganos.
Até recentemente acreditava-se que a adoração aSara Kali, a
Santa Deusa Negra dos ciganos era única em SaintesMaries-de-la-Mer. Entretanto,
uma pesquisa realizada por Ronald Leecom os refugiados ciganos da República
Checa, Eslováquia, Polóniae dos países dos Balcãs revelou o fato pouco
conhecido que outrasVirgens Negras são adoradas por ciganos. Este culto existe
no centroe leste da Europa, nas Américas (Canadá, Estados Unidos,
México,Brasil) e os ciganos desses países realizam rituais similares.
Essesrituais consistem em levar a estátua da Madona Negra sobre umaplataforma
adornada com flores para a água mais próxima, seja mar,lago, rio ou mesmo uma
lagoa de água límpida. A plataforma é,então, abaixada para tocar a água,
enquanto a multidão joga florese entoa louvações.
As cerimônias de Saintes Maries de-la-Mer,conhecidas como Le
pelerinage des Gitans (“peregrinaçãodos ciganos”) são bastante elaboradas e
atraem uma multidão defieis e curiosos, que aumenta em quarenta vezes a
população localda pequena cidade. Na tarde do dia 24 de maio, as estátuas das
duasMarias são retiradas dos seus nichos na parte de cima da igreja deSaint
Michel. As pessoas elevam as crianças e tentam tocar asestátuas antes de serem
colocadas no chão para obterem suasbênçãos. Em seguida, a estátua negra de
Santa Sara é retirada dacripta da parte de baixo da igreja, onde centenas de
velas de ceraenfumaçam o ambiente. No pedestal da santa amontoam-se roupas
dedoentes à espera de curas e inúmeros pedidos e oferendas decolares,
pulseiras, echarpes, notas de dinheiro e flores. A estátuada Santa é vestida
com novas e brilhantes roupas e é levada emprocissão sobre uma plataforma
adornada com flores, e carregada porciganos. A procissão liderada pelos padres
segue pelas ruasestreitas escoltada por guardiões cavalgando cavalos brancos.
Amultidão de fieis e turistas acompanha com gritos de “ViveSainte Sara” até a
praia, onde a plataforma é abaixada pelosguardiões até tocar a água, enquanto a
multidão joga flores, sebenze com a água do mar e continua gritando e pedindo
bênçãos dasanta. Depois, a procissão volta para a igreja onde a
multidãocontinua a veneração, formando filas para acender velas e passar
nafrente da estátua, colocando pedidos e presentes aos seus pés,lenços no seu
pescoço ou beijando o rosto da santa. No diaseguinte, as estátuas das duas
Marias são colocadas em um pequenobarco enfeitado com flores e levadas em
procissão até o mar,enquanto um número menor de pessoas grita ”Vive les
SaintesMaries”. Esta parte do festival tem uma nuance provençallocal, sendo
associada com participações artísticas dos ciganos.Para os ciganos que vêm de
vários lugares dos países europeus estefestival oferece uma oportunidade de
renovar laços familiares,contratos sociais, negociar casamentos, conduzir
negócios e batizarcrianças na igreja das duas Marias e de Santa Sara. Algo
poucodivulgado é o terceiro dia do festival, quando touros brancos
sãoconduzidos pelas ruas, enquanto as pessoas tentam desviá-los do seurumo.
Esta parte é uma reminiscência do culto do deus Mithraanterior ao cristianismo.
Estudiosos indianos e pessoas que testemunharam acerimônia
cigana, bem como os observadores ocidentais que estãofamiliarizados com os
costumes religiosos hindus, identificaram estacerimônia com a Durga Pooja da
Índia. No idioma Romani,Kali Sara significa “Sara Negra” e na Índia, a Deusa
Kali éconhecida sob seus aspectos de como Kali, Durga e Sara. Kalié o feminino
de kala = escuro ou preto e a deusa Kali eradescrita como uma deusa de pele
negra, fato que explica aidentificação de Sara com Kali e a Madona Negra. Como
os hindus, osciganos praticam o Shakhtismo, isto é, a adoração
dedeusas/energias femininas. Em outras palavras, os ciganos quefrequentam a
peregrinação a Saintes Maries-de-la-Mer na França eem outras cerimônias
semelhantes honram divindades femininas negras,pois na verdade continuam a
adorar Kali / Durga / Sara, sua Deusaoriginal indiana. Do seu aspecto inicial
violento, atemorizador eaniquilador, Kali evoluiu para uma Deusa Mãe
benevolente, sendoreverenciada como Bhavatarini, a “redentora do universo”. Os
ciganos reverenciam Sara-la-Kali como a MãeProtetora, que vai curar doenças,
perdoar erros e pecados, trazerboa sorte e fertilidade nas uniões e conceder o
sucesso emempreendimentos comerciais.
Em uma viagem de estudos que fiz no Sul da França em
2011,participei dos dois dias da comemoração. O calor, a multidãoamontoada nas
estreitas ruas ou ao longo da praia, as pessoas seempurrando para ter uma
melhor visão para as fotos ou se desviar doscavalos, não favoreciam uma real
conexão com o objetivo daprocissão. Os padres com batinas brancas e chapéus de
palha falavamentre si ou no telefone e algumas devotas gritavam “Vive
SainteSara” sem parar. Na volta da praia, as pessoas corriam tentandochegar
mais cedo à igreja para passar na frente da estátua e deixarseus pedidos e
presentes. Consegui me recolher e criar uma conexãocom a antiga egrégora do
local me sentando perto de uma moldura devidro no chão, embaixo da qual sabia
que havia a antiga fontesagrada das deusas celtas e de Ísis. Foi durante estes
momentos quesenti fortemente a permanência secular da energia sacra das
MadonasNegras, manifestada na figura de Sara La Kali, cujo culto
atual,independentemente do aspecto folclórico e da adaptação cristã,mobiliza a
adoração e veneração de multidões para Aquela que foi, é e continua sendo a
Nossa Negra Mãe.
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